Edward Hopper: O Pintor da Alienação

Tradução do ensaio publicado por Colin Wingfield em: https://colinjwingfield.blogspot.com/2014/10/edward-hopper-painter-of-alienation.html

Por que as pinturas de Edward Hopper despertam tanto interesse

Por anos venho mergulhando na teoria psicológica da alienação, especialmente na forma descrita pelo psicólogo germano-americano Erich Fromm, que a extraiu primeiro das ideias de Karl Marx. Interesso-me por esse assunto por que acredito que esse conceito de alienação fornece a explicação para muitos dos problemas da vida moderna. Mas certo dia, ao examinar algumas reproduções de pinturas e gravuras de Edward Hopper em um livro, me ocorreu que o artista estava, entre outras coisas, tentando incorporar a experiência da alienação em imagens em vez de em palavras. O autor do livro, por outro lado, tinha pouco a dizer sobre o que ele pensava que as imagens pudessem de fato significar. Embora a palavra "alienação" aparecesse de vez em quando na discussão, parecia apenas um gancho para pendurar os quadros de Hopper. Em vez disso, ele contou tudo que você queria saber e tudo que não queria saber sobre Hopper, sua família, sua época, tudo complementado por excertos de cogitações rebuscadas de 'críticos de arte', os quais frequentemente exibem eles mesmos características dessa mesma alienação. Foi a mesma história quando procurei na internet por estudos do trabalho de Hopper.

Foi então que pensei em eu mesmo analisar uma seleção de pinturas e gravuras de Hopper sob a ótica da teoria da alienação de Fromm e publicar minhas conclusões em forma de post. Que qualificações eu tinha para tal empreitada ambiciosa? Absolutamente nenhuma. Pode até mesmo ser que essa obsessão seja outro sinal de alienação. Nenhuma qualificação serve de garantia de que aquele que a possui tenha alguma vez na vida tido um pensamento original. Mas tenho sido por muito tempo um observador atento da cena humana e reflito cuidadosamente naquilo que passa diante dos meus olhos. É baseado apenas nessa característica que me considero apto para a tarefa. Este post, portanto, será sobre as gravuras e pinturas de Hopper, e não sobre sua vida, sua esposa ou cachorro.

Para começar, um pouco de contexto. Alienação é provavelmente algo tão antigo quanto o capitalismo, se não for muito mais antiga, mas parece inquestionável que a alienação aumentou muito na época de Hopper, já que o artista nasceu no início do que chamamos de Era da Mecanização. Foi nessa época que o Homem se tornou apêndice das máquinas, em vez de ser o mestre delas, como anteriormente. Para criar um contraste com o que havia antes, começo com uma análise de várias pinturas americanas terminadas antes que as novas condições sociais se consolidassem. Deve ficar evidente no contraste entre essas pinturas e as de Hopper que o efeito psicológico desse rebaixamento do ser humano ao nível de algo maquinal é um aumento da alienação em três campos. O Homem se tornou mais alienado da Natureza, de seus semelhantes e de si próprio.

 

 Edward Moran: Early Morning on South Beach 1874

Nesta pintura o homem é retratado como a figura dominante em uma paisagem natural. A ampla faixa de céu transmite um sentimento de liberdade infinita, e a luz suave recobre a cena com um véu de serenidade. Não há linhas retas ou sombras acentuadas aqui. O mundo feito pelo Homem é apenas indicado à distância. A figura do Homem é elevada acima dos animais e da linha do horizonte, enfatizando sua espiritualidade. Ele está envolvido num trabalho significativo em harmonia com seu meio ambiente.

 

 Edward Moran: Life Saving Patrol 1893

 

Embora seja noite aqui, uma lua brilhante ilumina o céu e não há nenhuma ameaça. O mar está calmo e o homem confia em seu conhecimento e experiência, simbolizados pela lanterna que ele carrega. Seu companheiro que o segue de perto é o próprio emblema da confiança e fidelidade.

 

 Samuel Carr: Beach at Coney Island 1879

 Novamente tranquilidade, com mar calmo e clima agradável, a naturalidade das crianças brincando, o orgulho da maternidade (ou sua superproteção). Não há crianças nas pinturas de Hopper.



 Eastman Johnson: The Conversation 1879

Uma mulher está sentada num barril, de cabeça baixa. O que ela está dizendo? Ou confessando? Outra mulher, mais velha, ouve com postura rígida. Será que está chocada? Não importam os detalhes dessa conversa, uma coisa é certa: existe relacionamento humano aqui.


Thomas Hovenden: Breaking Home Ties 1890

 Uma família. O rapaz, desajeitado e constrangido, é a pessoa de estatura mais alta na sala. Ele cresceu mais do que todos na família. Parece um pouco envergonhado por causa do excesso de preocupação da mãe, e talvez esteja ansioso para partir, já que está segurando seu chapéu. A expressão no rosto da mãe indica que ela está ansiosa e preocupada que talvez seu filho não esteja pronto para embarcar na jornada da vida, e seu avental estendido parece ainda querer envolvê-lo. A irmã mais velha, sentada à esquerda, acaricia o cão da família, para manter suas emoções sob controle. O cão quase parece estar ciente da solenidade da ocasião. A avó, à direita, olha para nós de maneira firme, com os lábios apertados. Ela já viu tudo isso antes. O pai está virado para a porta, de costas para nós, com a bolsa do filho pendurada em sua mão. Ele está ansioso para que o momento melodramático da mulher termine logo. A irmã mais nova, escorada na ombreira da porta, mostra pela expressão lânguida e olhar pesaroso que a partida do irmão será uma grande perda para ela. Um homem no corredor, que pode ser um amigo da família, observa com curiosidade.

O mundo de Hopper é muito diferente.

 

New York Corner 1913 

O mundo todo é um palco, e os homens e mulheres meros atores. Vários personagens parecem ter pares, mas não há qualquer sinal de intimidade ou de conversas. Eles parecem feitos de madeira. A cor e o contorno fortes do prédio vermelho o separam do fundo embaçado. Ele parece fazer parte de um cenário teatral. As linhas horizontais da calçada elevada sugerem um palco e os trilhos de bonde, e a luz é brilhante e difusa como num palco. A pintura poderia ser uma impressão pictórica de falas shakespearianas.



  Night Shadows 1921 

O cenário é o mesmo de New York Corner, mas quanta diferença no tratamento! Hopper o fez parecer misterioso e ameaçador através do uso marcante de tons claros e escuros, e especialmente pelo recurso da sombra agourenta pela qual o homem solitário está prestes a passar. A técnica aqui prenuncia o estilo do cinema noir dos anos 1940, com sua luminosidade sombria e suas narrativas de crime, culpa e traição.

 

 Solitary Figure in a Theater 1902

O duradouro interesse de Hopper em palcos e telas é mostrado nesta pintura de 1902. A perspectiva escorçada e coloração sepulcral dão a impressão de um cemitério iluminado pela lua, ao passo que a figura humana, reduzida a mera sombra, um fantasma vazio, parece se erguer por entre as lápides para projetar uma cabeça sem forma definida no espaço do palco ainda coberto pela cortina, como que aguardando para se alimentar da vida tremulante que logo aparecerá ali.

 

Daumier: The Drama c. 1860-1864

Hopper foi influenciado pelo pintor francês Honoré Daumier, que pintou cenas teatrais que mostravam tanto a peça quanto os espectadores, mas ao passo que Daumier retratou a platéia intensamente envolvida com a ação no palco,


Intermission 1963 

Hopper pintou espectadores, não apenas alienados da ação, mas de outros espectadores. A solidão e isolamento dessa mulher são enfatizados por uma porta fechada, sua receptividade e passividade (quase um transe) são acentuadas pelos fortes ângulos diagonais da cornija e dos assentos, que parecem impulsioná-la, querendo ela ou não, em direção do palco, do qual vemos apenas um vestígio. Ela parece estar enfeitiçada, e abomina a ideia de voltar à realidade.



First Row Orchestra 1951 

Aqui, em contraste, o palco ocupa grande parte da pintura, em parte para transmitir a sensação de expectativa em um teatro nos momentos que antecedem o levantar da cortina. Mas não há nenhum traço de empolgação ou antecipação, nem mesmo o mínimo de conversa entre os que chegaram mais cedo. A mulher na primeira fila cruzou as pernas na direção oposta à do marido, sinal de que ela está muito pouco interessada nele, embora ele, por sua postura, pareça ser atencioso. Em vez disso, ela presta atenção no programa. Claramente, porém, ela deriva muito pouca inspiração daí também; podemos perceber isso pela sua mão esquerda, que pende de uma forma que denota tédio – um motivo que se repete na mão do homem no final da segunda fila. Mesmo assim, as cores, a ação e os sons do teatro provavelmente servirão como alívio da tediosa monotonia de uma vida alienada até mesmo do seu cônjuge.

  

New York Movie 1939 

Novamente uma cena em um cinema, no qual existe ação acontecendo, mas vemos apenas um pedaço da tela. O foco também não está nos espectadores, como em 'First Row Orchestra', mas em uma melancólica empregada de cinema. Os espectadores se encontram absortos na ilusão do filme, enquanto a empregada está esmagada pelo tédio. A escadaria iluminada sugere a possibilidade de uma ascensão espiritual, de transcender sua tediosa situação, mas ela permanece aprisionada em seu mundo interior amarrado a uma realidade excruciante e monótona, na qual representações de irrealidades são apresentadas noite após noite após noite. Note a coluna, com motivos que remetem ao mundo real, à natureza, congelados em gesso.

 

 Road in Maine 1914 

Nenhum outro pintor era capaz de capturar a alienação humana tanto da natureza quanto da civilização, ou cultura, produto total do trabalho humano. Aqui a civilização é simbolizada apenas por três postes de telégrafo e um pedaço de estrada que parece começar e terminar em lugar nenhum. De onde vem? Para onde vai? Apenas desorienta o observador. A natureza é representada pelas massas arredondadas das colinas, as quais parecem emanar permanência e paz, mas também sugerem uma indiferença em relação às coisas humanas. Não há nenhuma criatura solitária à vista.


Railroad Train 1908

Nesta pintura a natureza é representada pela faixa de grama, pelo céu e pela pluma de fumaça, a civilização pelo trem e pelo solo compactado da linha férrea. A cor preta do trem confere a ele poder mistério. Mas o preto também é associado ao medo e ao desconhecido. Ele se destaca agressivamente contra a grama e a fumaça, a cor amarelada desta última sugerindo doença e decadência. Mas onde está a locomotiva, apitando e trovejando pelos trilhos? Hopper com frequência retrata um instante no qual uma ação está prestes a acontecer, ou um logo depois que aconteceu. O observador fica assim meio desorientado por que ele nunca está presente no evento em si; ele fica alienado dele. 



The Locomotive 1922

Aqui está presente a própria locomotiva, mas a maior parte dela não aparece na imagem. E ela não está trovejando pelos trilhos. Pelo contrário, está parada diante da entrada de um túnel escuro, o que frequentemente sugere mistério e o desconhecido. Para Hopper o trem, mais do que qualquer outra coisa, representava a revolução mecânica que estava varrendo o mundo, mas seu interesse nela era filosófico e não científico. A gravura parece nos perguntar: “para onde a revolução mecânica está nos levando?"



American Landscape 1920

Qual é o seu impacto em nosso mundo? Aqui uma vaca parece ter dificuldades para atravessar um trilho de trem, mas suspeitamos que não seja apenas o gado que está enfrentando problemas ao lidar com a transformação mecânica.

 

House by the Railroad 1925


Assim como em Railroad Train e American Landscape, um ponto de vista baixo foi escolhido para isolar o sujeito de seu cenário natural, o qual poderia servir de referência para um significado histórico, pois a casa se encontrava “orgulhosa” e natural em seu próprio cenário. Separada do observador, como aqui, literalmente atravessada pela linha férrea, emblema do progresso mecânico, ela apenas parece anacrônica e bizarra, além de abandonada, já que todas as janelas parecem fechadas e com cortinas. O único traço de natureza, além do céu, é a terra e o aterro feito pelo homem. Mais uma vez fica evidente a influência de Hopper no gênero noir.

 

The Bates' house, Psycho 1960


 

 Railroad Sunset 1929

Um pôr do sol incandescente, a memória persistente de um belo dia, mas também um símbolo do fim de uma era magnífica, a era de uma América virgem e sem limites. A ferrovia transportava para as regiões mais remotas da terra todas as bênçãos ambíguas da civilização moderna com seu movimento e barulho frenéticos. A paisagem é imensa nesta obra, e suas formas ondulantes sugerem uma calma e ritmo naturais. Mas sua crosta ancestral foi cortada para abrir caminho para os trilhos, cujas linhas retas reluzentes parecem criar uma base artificial e mais fria para a paisagem. Ainda assim, estão ausentes o movimento e o ruído incessantes associados à civilização moderna. Não são os efeitos diretos que Hopper deseja capturar, mas seu impacto sobre a existência. A torre de comando, que parece uma torre de vigilância, com uma sombra sinistra, e um poste de sinalização que lembra o mastro de um campo de prisioneiros, parece guardar uma barreira silenciosa que impede a entrada na paisagem.

 

New York, Newhaven & Hartford 1931


Diferente de House by the Railroad e Railroad Sunset, nesta pintura temos uma visão mais elevada dos trilhos, de modo que suas junções ficam totalmente visíveis. Elas formam uma série de linhas diagonais curtas que passam eficientemente a ideia de movimento. O efeito é repetido nas várias árvores de troncos estreitos, que parecem escalar o aterro, enquanto vários de seus galhos apontam para a direita, reforçando a sensação de movimento. Alguns até lembram animais correndo ou voando. A casa parcialmente coberta não está posicionada em uma terça parte do quadro, como é mais comum, mas no centro dele, de modo que parece ter sido deixada para trás pelas árvores. A paisagem que desce para a esquerda também contribui para a sensação de movimento para a direita, assim como a construção externa que parece descer a encosta. O efeito geral é de um único quadro extraído de um filme em movimento. De um ponto de vista psicológico, a experiência do presente foi reduzida a uma fração de segundo e isolada, ou alienada, da continuidade do passado, presente e futuro.

 

Compartment Car 293 1938


O advento da ferrovia, assim como o do automóvel ou do telefone, teve como efeito o encurtamento das distâncias, o que resultou na diminuição da experiência de viajar. A moça está sentada confortavelmente em um compartimento bem iluminado, quase como se estivesse em casa, e a sensação de viajar aqui está reduzida a um trecho de paisagem emoldurado por uma janela, como se fosse uma pintura pendurada na parede de sua própria casa. Ela se senta longe desse “quadro”, sem interesse nele, absorta na leitura – algo que ela poderia fazer em casa. Embora podendo relaxar em seu compartimento privado, suas pernas cruzadas e seu chapéu ainda na cabeça mostram certa atitude defensiva. Os detalhes da paisagem que ela ignora são significativos. O pôr-do-sol é por tradição um lembrete da morte, o fim da vida, de que a vida é para ser vivida, e de que a vida dela está se esvaindo. A ponte simboliza a transformação de um estado para outro, ou a possibilidade de uma vida ativa em vez de uma que permanece imutável.

 

Chair Car 1965 


Aqui, foi removido todo traço do mundo fora do trem, extinguindo assim qualquer senso de movimento. Os passageiros confortavelmente sentados estão alienados do mundo exterior, já que nenhum deles está olhando pela janela. Estão também alienados um do outro, uma vez que – como é comum em Hopper – não há nenhum sinal de conversa entre eles. É como se o movimento entre dois locais não fosse mais movimento, mas apenas outro espaço, e ainda por cima confinado, já que não há maçaneta na porta que leva para fora dele. A experiência de uma jornada, simbolizando uma aventura na própria vida, se tornou congelada, sem vida e confinada.

 

Approaching a City 1946


O túnel escuro, como aquele na gravura Locomotive, significa mistério e o desconhecido, mas aqui não há nenhum trem. Em vez disso, o observador é colocado na posição de imaginar a si mesmo pisando nos trilhos, com medo de ser aniquilado num instante. Além disso, em vez do senso de elevação muitas vezes associado à proximidade do fim de uma jornada, ficamos na suspeita de sermos devorados por uma coisa monstruosa e insensata, simbolizada pela fachada sem cor e pelas janelas opacas do prédio acima.



Para se deslocar em New York City, Hopper muitas vezes se utilizava da linha férrea elevada, que existia em sua época. Enquanto se locomovia no “EL”, ele provavelmente olhava para fora e vislumbrava cenas pelas janelas dos prédios em volta, que podem ter servido de inspiração em suas pinturas.

 

Night Windows 1928


Na era agrária existia uma distância entre as pessoas, tanto em sentido físico quanto psicológico, mas a era da máquina demoliu essa distância e introduziu em seu lugar uma falsa sensação de intimidade. A intimidade genuína é aquela incorporada a uma narrativa, uma história humana, mas a ‘intimidade’ retratada nesta pintura é propositalmente fugaz e fragmentada por recursos tais como a cortina empurrada subitamente por uma rajada de vento, a figura humana inclinada momentaneamente, bem como a redução do espaço, e especialmente pela divisão da imagem em três enquadramentos, como um trecho de filme de cinema. São frequentes os comentários de que as pinturas de Hopper resistem a uma narrativa, implicando que tais recursos são apenas artifícios que Hopper empregava para tornar suas obras interessantes para as pessoas. Isso está longe de ser verdade. Hopper estava apenas registrando suas impressões pessoais da vida enquanto condicionada às exigências alienantes da era da máquina.

 

Office at Night 1940


Alguns observadores tentaram criar uma ‘história’ romântica nesta pintura, mas a postura rígida das duas figuras indica na verdade uma repressão de sentimento romântico, especialmente por parte do chefe, que de forma estudada ignora as curvas voluptuosas de sua bela secretária. A postura dela, entretanto, livre de uma atitude profissional, é mais receptiva, pois ela se virou para ficar de frente para ele. A possibilidade de um episódio romântico é sugerida pelo retângulo de luz na parede de trás, que une as duas figuras, e pela cortina que balança, simbolizando sentimentos em comoção. As mãos ocupadas das figuras (algo incomum nas obras de Hopper) são uma forma de se manter sob controle, e talvez uma forma de compensação por um abraço. A pintura poderia ser um estudo de repressão do sentimento espontâneo, uma das principais consequências da alienação.

 

Room in New York 1932


A essa altura não deveria nos surpreender que não exista comunicação entre esses dois personagens, embora sejam obviamente marido e esposa. Sua alienação em relação um ao outro é enfatizada pela porta fechada ocupando o espaço entre eles. As duas figuras estão visualmente unidas por uma mesa redonda, um símbolo do ambiente doméstico, mas aqui implica que a única coisa que os une é o espaço físico que compartilham. A forma de se vestir do homem indica que ele acaba de chegar do escritório, onde ele estava sentado lendo material impresso o dia todo, apenas para chegar em casa e ler mais material impresso. Mas ele não está lendo um jornal, relaxando; está inclinado para frente em uma atitude de estudo. Estudo de números, talvez finanças. A mulher, em contraste, parece estar usando um vestido de sair, o que mostra um desejo de sair socializar, ou simplesmente de agradar o marido. Seja qual for o motivo, ela quer aproveitar a vida e quebrar o feitiço da alienação. Sua mão esquerda pendendo indica tédio, e ela toca algumas notas no piano para se distrair. Talvez desejasse que seu marido se interessasse por ela e largasse sua obsessão por números! O vermelho de seu vestido simboliza paixão, desejo, amor.

 

Summer Evening 1947


Aqui temos uma garota que repele sentimentos espontâneos, como testemunha a rigidez de seu corpo, apoiado na varanda como que para evitar ser persuadida. Ela usa apenas uma roupa de banho de duas peças, sem alças, um item de vestimenta que rotularia a usuária como “ousada” em 1947. Sua postura, inclinando-se frente, é uma atitude de resistência, mas ao mesmo tempo um tanto provocativa. O rapaz está de frente para ela, com a mão no peito, aparentemente num gesto de súplica, possivelmente está se declarando para ela. Por que ela resiste tanto? Podemos talvez achar a resposta numa carta que uma mulher enviou a uma revista, após a publicação do relatório Kinsey 1948 sobre o comportamento sexual masculino. Ela reclama que todo o estudo foi uma perda de tempo para o Dr. Kinsey; ler o livro foi uma total perda de tempo para ela. Tudo o que o livro fez foi provar o que ela e toda moça direita sempre soube, a saber, que “a população masculina é um rebanho de bodes maliciosos, ao ataque.”

 

Sunlight in a Cafeteria 1958


♪ Love and marriage, love and marriage
Go together like a horse and carriage ♪

♪ Amor e casamento, amor e casamento
Andam juntos como cavalo e carroça♪

Quando esta canção foi escrita, em 1955, cavalos e carroças há muito tinham sumido das ruas da América, mas o cavalo e carroça da moralidade sexual seguiam firme pela América em 1958. Tanto o rapaz quanto a moça parecem estar livres para um relacionamento. O rapaz faz um gesto com a mão esquerda, parecendo estar prestes a se dirigir à moça, e esta, por sua vez, está com o rosto inclinado na direção dele. Mas existe uma barreira entre eles, pois a moça está iluminada pelo sol, ao passo que o rapaz está na penumbra. Ela brinca com seus dedos, parece estar pensativa. Sobre o quê será que ela pensa? Na mesa em frente a ela há dois objetos que podem dar uma pista: há um saleiro e um pimenteiro – este último da mesma cor do cabelo dela – posicionados lado a lado. Casamento? Por outro lado, na mesa atrás do rapaz há um único saleiro, ereto, o que indica seus pensamentos de natureza mais carnal. Ele observa a planta no parapeito, símbolo de ambiente doméstico, como se precisasse se adaptar a isso antes de poder se aproximar da moça. De fato, podemos facilmente imaginar os dois indo embora e nunca mais se encontrando novamente, pois, pelo menos até 1958, as pessoas ainda viviam sob o controle de uma moralidade sexual que separava as “moças direitas” dos “bodes maliciosos”, que precisavam ser domados pelo casamento. Será que Hopper colocou a moça sob o sol e o rapaz na penumbra para zombar desses conceitos alienantes?

 

Hotel by a Railroad 1952


 Um retrato da alienação na meia-idade. O homem ocupa o centro da pintura sob a luz que vem da janela, enquanto sua esposa está renegada a um canto, o que dá uma ideia do tipo de relacionamento que existe entre os dois. Ele está olhando para uma combinação desoladora e claustrofóbica de muros, um fragmento de trilhos e uma nesga de céu azul. Será que ele se dedica a perscrutar esse cenário medonho como um pretexto para não ter que olhar para sua esposa? Ela parece ter perdido qualquer incentivo para se arrumar, provavelmente por causa do desdém habitual de seu marido. Essa deve ser também a razão de sua aparência maltrapilha, sua postura encurvada e a posição nada feminina de suas pernas. Ele, em contraste, é um exemplo de vestimenta correta em relação à camisa, gravata, calças e colete. Além disso, suas costas retas como uma vara revelam certa atitude puritana. Ele segura um cigarro de forma pretensiosa, e podemos facilmente imaginar os dedos de sua mão esquerda afetadamente enfiados no bolso do colete. Ele, evidentemente, deve se considerar muito importante, ao passo que sente por sua esposa desprezo no mais alto grau. Aparentemente ela se resignou a esse relacionamento alienado e busca escape na leitura.

 

Chop Suey 1929


Novamente, nem um traço de natureza. O céu é apenas um vazio e o silêncio predomina entre as quatro pessoas. A alienação entre elas é enfatizada pelas linhas verticais que os dividem no espaço e sua mudez contrasta estranhamente com as cores que dominam o ambiente. Laranja, a cor da peruca de um palhaço, sugere diversão, frivolidade e entretenimento. O efeito é potencializado pelo aspecto carnavalesco do letreiro do lado de fora da janela com suas lâmpadas multicoloridas, e também pelo vermelho e branco do rosto semelhante a uma máscara, que se projeta para dentro no espaço da cena. 

Vindas da esquerda, as diagonais afuniladas conectando esse rosto ao de seu companheiro parecem sugerir que o homem acaba de dirigir a palavra à mulher, e não ela a ele, pois sua a cabeça do homem, banhada em numa cor azul fria e seu olhar voltado para o chão sugerem uma indiferença habitual ao fervor transmitido pelo chapéu vermelho. A mulher que está de costas para nós pode estar falando, pois está inclinada para frente com os cotovelos na mesa, um gesto que indica disposição para conversar. A mulher do outro lado da mesa, em contraste, senta-se ereta, defensivamente, e os ombros meio de lado mostram que ela não está confortável nessa situação; além é claro do fato de não olhar nos olhos de sua interlocutora.


Eleven AM 1926

 

Uma mulher olha através da janela aberta para algo ou alguém invisível ao observador, um motivo comum em Hopper, que obscurece a relação do sujeito com o mundo.  A figura se destaca no pequeno espaço que ocupa por causa da brancura de sua pele contra as cores escuras do plano de fundo. Sua nudez parece convidar à intimidade, mas seu rosto, a parte da anatomia que mais distingue os seres humanos, está virado para o outro lado, de forma que o observador fica mantido à distância. A palidez cadavérica de sua pele sugere uma condição adoentada, mas em contraste, seu cabelo longo e volumoso demonstra um desejo de ser feminina e fértil, isto é, saudável. Mas ela nunca alcançará isso até que supere sua alienação do mundo externo.

 

Automat 1927

 

Aqui o relacionamento do indivíduo com o mundo exterior mais uma vez parece alienado. O olhar desalentado da mulher mostra que seu ser está totalmente focado em seu próprio mundo interior. Através da ampla janela, nada do lado de fora pode ser visto, exceto um reflexo parcial do lado de dentro, o que simboliza seu próprio mundo interior. Ela reluta em abandonar seu copo, o que reflete sua relutância em descartar seu fascínio introspectivo. A mesa redonda é tradicionalmente associada ao “mundo”, e sua posição empoleirada sobre ela sugere que sua vida interior se tornou seu único mundo. Sua escolha de casaco, com detalhe de peles, enfatiza sua feminilidade, assim como o batom vermelho que ela usa. A modéstia da feminilidade aparece na posição de suas pernas. Fisicamente, ela é um paradigma de mulher madura, fértil, uma impressão acentuada pela taça com frutas sobre o peitoril da janela. Mas sua promissora fertilidade está fadada a permanecer infrutífera pela falta de um relacionamento adequado com o mundo exterior e com outras pessoas. A cadeira vazia à direita, de frente para a mulher, insinua a ausência do “outro”.

 

Room in Brooklyn 1932


“Mas silêncio! Que luz se escoa agora da janela? Será Julieta o sol daquele oriente?” Na arte do Ocidente, a luz tem sido há muito tempo símbolo do amor. a figura feminina nesta pintura, porém, apertada no canto esquerdo do quadro, escolheu se sentar longe da luz do sol que vem do leste, embora ela esteja sendo fisicamente tocada por essa luz. Ela está de costas para o observador, indicando separação, e ela não parece sequer estar olhando pela janela, mas absorta em um livro, pois ela está de cabeça baixa e com os cotovelos apoiados nos braços da poltrona. ao contrário da figura humana, parcialmente obscurecida pela sombra, o vaso de flores em cima da mesa ocupa uma posição de destaque no quadro. além disso, recebe bastante ênfase pela sua altura e seu lugar banhado ao sol. Embora a mulher esteja ligada ao vaso pelos padrões florais de seu vestido, as folhas e flores parecem estar buscando a luz, em contraste com sua pose retraída. Esta pintura transmite as mesmas sensações que Automat. a jovem mulher está alienada de sua própria feminilidade, de sua capacidade de amar e da promessa de fertilidade por causa da falta de um relacionamento adequado com o mundo exterior.

 

 New York Office 1962

Já vimos até agora em muitas pinturas pessoas “à mostra”, como resultado de viverem numa cidade maquinal, onde às vezes até mesmo detalhes íntimos da vida de uma pessoa tornam-se públicos. Qual é a consequência de tudo isso? Uma perda de espontaneidade, com certeza, por que uma pessoa comum, em tais condições, se torna uma espécie de performer  público, alguém que perdeu seu senso de identidade, de realidade, de quem é, de forma que sucumbe a fantasias de fama. Inconscientemente raciocina: “se eu for famoso, então o público dirá quem sou.” Então, em 1962, parece que a ideia de romance não mais era de interesse da humilde funcionária de escritório. Agora ela quer ser modelo, uma celebridade, uma Marilyn Monroe, amada por todos, porém livre das complicações de ser obrigada a retribuir esse amor.


Early Sunday Morning 1930


Linhas horizontais e iluminação forte novamente sugerem um palco de teatro com uma cidade ao fundo, chocante pela ausência de atores, um palco no momento em que a cortina se ergue, mas antes que ação se inicie. A cena é ainda mais despersonalizada por causa dos letreiros ilegíveis, a ausência de detalhes nos interiores, o arranjo das cortinas vagamente inquietante por sugerir pessoas ocupadas, mas ocultas e possivelmente à espreita. Um senso de estabilidade enganoso é transmitido pelas fortes linhas horizontais e verticais, mas uma tensão embrionária é sugerida pelas sombras que se esguelham e atravessam a fachada e pela escuridão inescrutável espreitando nas vitrines e corredores das lojas.

Sunday 1926 

Um homem sentado do lado de fora do que parece ser sua loja. Ele parece entediado porque não há clientes e ele não tem o que fazer. Pode-se dizer que sua monotonia e vazio interior é que o impedem de fazer alguma coisa, ou que fazer qualquer coisa não ligada a seu negócio é inconcebível para ele. Domingo é tradicionalmente um dia para descansar, e mesmo que o homem esteja imóvel, ele não possui a serenidade que o permitiria descansar de verdade. Embora a calçada de madeira e os edifícios indiquem que esta é uma cidade do interior, não há nenhum traço de natureza à vista.


Lighthouse Hill 1927


 Nem um único ser humano aqui, nenhuma alma viva à vista. Uma cena desolada, ainda mais desolada pela presença de um farol, e sinistra pela fachada sombria e janelas escuras de uma habitação que parece vigiar a colina e despejar sombras colina abaixo na sua direção. Outro elemento perturbador é o posicionamento do farol no centro e não numa terça parte do quadro, como é mais comum, deixando uma lacuna desagradável. Parece que em Hopper, nem mesmo a natureza, que, como se diz, pode "levar paz a mentes perturbadas” permite que se escape da apreensão.

 

Drugstore 1927 


Esta pintura não tem um ponto focal definido, então o olhar vagueia, perdido. As diagonais nas estamenhas e as sombras triangulares na calçada criam tensão. Até mesmo as linhas horizontais na frente da loja não são paralelas ao enquadramento, mas inclinadas de leve, sugerindo insegurança ou incerteza. A luz no interior parece implicar um refúgio da rua deserta e escura, mas a porta de entrada, que deveria mostrar que o visitante é bem-vindo, está escondida. A porta ao lado está fechada e escura, o que significa sigilo e repulsa. Além disso, o interior parece tão vazio de seres humanos quanto o lado de fora. Impulsos conflitantes são criados pelo encontro entre os garrafões suspensos, símbolo tradicional das farmácias, com suas formas femininas, e as linhas retas masculinas das estamenhas, juntos formando um conjunto de aparência irregular, ameaçadora. O princípio masculino se manifesta também no aglomerado de caixas abaixo, que estão dispostas em ângulos que convertem suas linhas verticais em diagonais que criam tensão. As caixas, juntamente com as estamenhas acima, parecem direcionar o olhar a um ponto de foco: o espaço retangular em branco delineado por linhas retas. O trabalho como um todo implica que, ao passo que o mundo externo é tipificado pelo mistério e ameaça, no espaço interior há ansiedade e incerteza, vazio de substância em seu núcleo. Existe forma melhor de dizer em tinta que o homem está alienado de seus semelhantes e de si mesmo? Um pouco de humor fica claro no anúncio de “Ex-Lax”, um remédio comum para constipação, já que uma causa frequente de constipação é a ansiedade. A implicação é: “se você sofre de ansiedade, tome remédio”. Uns trinta e cinco anos mais tarde, os Americanos estariam fazendo isso em larga escala.

 

 Nighthawks 1942


Mais uma vez, uma rua deserta e escura, com faixas de luz triangulares e sombras na calçada que sugerem que a tensão emana do interior do restaurante. Mas qualquer porta que poderia receber as pessoas não está apenas escondida, simplesmente não existe. Em contraste com Drugstore, porém, o lugar não está vazio de seres humanos: a tensão de alguma forma emana deles. Alguns observadores percebem na cena uma expectativa de algum acontecimento dramático, baseado na ideia de que o casal na pintura parece um gângster e sua “parceira”. Isso é verdade. Olhe para o homem com atenção. Ele parece estar encarando fixamente o atendente com os lábios apertados, e a forma despreocupada que ele segura o cigarro mostra certa despreocupação em seus escrúpulos. A mulher, magra e de ombros largos como na ideia convencional de uma amante de gângster, se distrai de forma indiferente com o que parece ser um pedaço de papel, como se estivesse aguardando – como cúmplice – um inevitável irrompimento de violência. Mas não há evidência objetiva em apoio de tal visão, e o trabalho contém várias pistas que tendem a contradizê-la, como a presença de uma terceira pessoa, ou, é claro, a ofuscante luminosidade do lugar, ou a forma como expõe espetacularmente o interior. Dado o interesse de Hopper pelo cinema, é possível que ele tenha concebido o lugar para se parecer com um cenário de filme, com o propósito de confundir realidade e fantasia. Só por que alguém parece um gângster não significa que seja de fato um, como qualquer ator num filme de gângster pode confirmar. Qualquer cena que seja deve ser interpretada e analisada em busca de seu significado, e depende de você definir até que ponto ela é real ou irreal. Mas é claro que se você estiver alienado de si mesmo, não existe um “você” para fazer tal definição. A pessoa, em tal condição, fica apenas afogada em um mar de sensações.

 

Cape Cod Evening 1939


Mais um comentário de Hopper sobre o fim da era agrária, na qual esta casa em estilo vitoriano certamente se destacava entre as propriedades e terrenos cultivados. Mas agora a natureza está ocupada retomando o lugar. A floresta parece ter avançado até as paredes da casa, e a árvore na dianteira estende um galho até uma janela, como um braço explorador. A grama engole os pés dos moradores, um casal típico de Hopper, alienado e em silêncio mútuo. Eles se encontram ilhados, vindos de uma era que se encerrou. A mulher tenta “manter as aparências” usando um vestido formal e um cabelo bem cuidado, mas esses cuidados apenas a tornam ainda mais antiquada. Seus braços cruzados mostram que seu destino a deixa impaciente. O homem, entretanto, nem sequer se incomoda de vestir uma camisa de mangas compridas, enquanto sua tentativa de chamar a atenção do cão com uma bola mostra que ele aceitou ou se resignou com a vida que os dois têm. Mas o animal escapa da domesticação por um momento, pois alguma coisa na floresta invasiva chama sua atenção.

 

Gas 1940 

É uma tarde novamente, com a mesma sugestão de um sol se pondo na América rural. Sua morte é sublinhada pela escuridão da floresta ao fundo, contrastando com as linhas claras e brilhantes do posto de serviços, um símbolo fundamental da América da era da máquina. Mas em vez de oferecer um elogio a esse emblema de progresso mecânico, Hopper confere a ele uma série de símbolos arcaicos. Primeiro, a construção de tábuas. Ela lembra ligeiramente uma igreja ou templo, com algo que lembra um campanário no topo e a luz ofuscante que irradia do seu interior e em volta dela, como se a fonte dessa luz fosse uma chama sagrada e não lâmpadas fluorescentes. Uma dessas línguas de fogo surreal chega quase a tocar a grama do acostamento da estrada. Segundo, todos que entram o fazem sob a efígie do Pégaso, o cavalo voador da mitologia grega, associado à ideia de velocidade, força e transporte rápido, atributos que as empresas querem que sejam associados aos seus produtos. Terceiro, as próprias bombas de combustível. Elas parecem ídolos antropológicos, feitos não de madeira ou de pedra, mas de metal; mais do que isso, são máquinas com forma humana. Como eu disse no início, a máquina se tornou o mestre do Homem e deixou de ser o seu servo. Quarto, o atendente do posto de serviços. Por que ele estaria mexendo com essas máquinas ao cair da noite se não fosse o sumo sacerdote que ministra esses deuses mecânicos? E por último, eles estão tingidos de vermelho, mas um vermelho que Hopper ajustou para a cor do sangue. Sangue sacrificial, alguém pode afirmar, pois a máquina, como mestre do Homem, suga dele seu sangue vital por aliená-lo de tudo aquilo que o torna humano.

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