Edward Hopper: O Pintor da Alienação
Tradução do ensaio publicado por Colin Wingfield em: https://colinjwingfield.blogspot.com/2014/10/edward-hopper-painter-of-alienation.html
Por que as pinturas de Edward Hopper despertam tanto interesse
Por
anos venho mergulhando na teoria psicológica da alienação, especialmente na
forma descrita pelo psicólogo germano-americano Erich Fromm, que a extraiu
primeiro das ideias de Karl Marx. Interesso-me por esse assunto por que
acredito que esse conceito de alienação fornece a explicação para muitos dos
problemas da vida moderna. Mas certo dia, ao examinar algumas reproduções de
pinturas e gravuras de Edward Hopper em um livro, me ocorreu que o artista
estava, entre outras coisas, tentando incorporar a experiência da alienação em
imagens em vez de em palavras. O autor do livro, por outro lado, tinha pouco a
dizer sobre o que ele pensava que as imagens pudessem de fato significar.
Embora a palavra "alienação" aparecesse de vez em quando na discussão,
parecia apenas um gancho para pendurar os quadros de Hopper. Em vez disso, ele
contou tudo que você queria saber e tudo que não queria saber sobre Hopper, sua
família, sua época, tudo complementado por excertos de cogitações rebuscadas de
'críticos de arte', os quais frequentemente exibem eles mesmos características
dessa mesma alienação. Foi a mesma história quando procurei na internet por
estudos do trabalho de Hopper.
Foi
então que pensei em eu mesmo analisar uma seleção de pinturas e gravuras de
Hopper sob a ótica da teoria da alienação de Fromm e publicar minhas conclusões
em forma de post. Que qualificações eu tinha para tal empreitada ambiciosa?
Absolutamente nenhuma. Pode até mesmo ser que essa obsessão seja outro sinal de
alienação. Nenhuma qualificação serve de garantia de que aquele que a possui
tenha alguma vez na vida tido um pensamento original. Mas tenho sido por muito
tempo um observador atento da cena humana e reflito cuidadosamente naquilo que
passa diante dos meus olhos. É baseado apenas nessa característica que me
considero apto para a tarefa. Este post, portanto, será sobre as gravuras e
pinturas de Hopper, e não sobre sua vida, sua esposa ou cachorro.
Para começar, um pouco de contexto. Alienação é provavelmente algo tão antigo quanto o capitalismo, se não for muito mais antiga, mas parece inquestionável que a alienação aumentou muito na época de Hopper, já que o artista nasceu no início do que chamamos de Era da Mecanização. Foi nessa época que o Homem se tornou apêndice das máquinas, em vez de ser o mestre delas, como anteriormente. Para criar um contraste com o que havia antes, começo com uma análise de várias pinturas americanas terminadas antes que as novas condições sociais se consolidassem. Deve ficar evidente no contraste entre essas pinturas e as de Hopper que o efeito psicológico desse rebaixamento do ser humano ao nível de algo maquinal é um aumento da alienação em três campos. O Homem se tornou mais alienado da Natureza, de seus semelhantes e de si próprio.
Nesta
pintura o homem é retratado como a figura dominante em uma paisagem natural. A
ampla faixa de céu transmite um sentimento de liberdade infinita, e a luz suave
recobre a cena com um véu de serenidade. Não há linhas retas ou sombras
acentuadas aqui. O mundo feito pelo Homem é apenas indicado à distância. A
figura do Homem é elevada acima dos animais e da linha do horizonte,
enfatizando sua espiritualidade. Ele está envolvido num trabalho significativo
em harmonia com seu meio ambiente.
Embora
seja noite aqui, uma lua brilhante ilumina o céu e não há nenhuma ameaça. O mar
está calmo e o homem confia em seu conhecimento e experiência, simbolizados
pela lanterna que ele carrega. Seu companheiro que o segue de perto é o próprio
emblema da confiança e fidelidade.
Uma mulher está sentada num barril, de cabeça baixa. O que ela está dizendo? Ou confessando? Outra mulher, mais velha, ouve com postura rígida. Será que está chocada? Não importam os detalhes dessa conversa, uma coisa é certa: existe relacionamento humano aqui.
Thomas Hovenden: Breaking Home Ties 1890
O
mundo de Hopper é muito diferente.
New York Corner 1913
O
mundo todo é um palco, e os homens e mulheres meros atores. Vários personagens
parecem ter pares, mas não há qualquer sinal de intimidade ou de conversas.
Eles parecem feitos de madeira. A cor e o contorno fortes do prédio vermelho o
separam do fundo embaçado. Ele parece fazer parte de um cenário teatral. As
linhas horizontais da calçada elevada sugerem um palco e os trilhos de bonde, e
a luz é brilhante e difusa como num palco. A pintura poderia ser uma impressão
pictórica de falas shakespearianas.
O cenário
é o mesmo de New York Corner, mas
quanta diferença no tratamento! Hopper o fez parecer misterioso e ameaçador
através do uso marcante de tons claros e escuros, e especialmente pelo recurso
da sombra agourenta pela qual o homem solitário está prestes a passar. A
técnica aqui prenuncia o estilo do cinema noir dos anos 1940, com sua
luminosidade sombria e suas narrativas de crime, culpa e traição.
O duradouro
interesse de Hopper em palcos e telas é mostrado nesta pintura de 1902. A
perspectiva escorçada e coloração sepulcral dão a impressão de um cemitério
iluminado pela lua, ao passo que a figura humana, reduzida a mera sombra, um
fantasma vazio, parece se erguer por entre as lápides para projetar uma cabeça
sem forma definida no espaço do palco ainda coberto pela cortina, como que
aguardando para se alimentar da vida tremulante que logo aparecerá ali.
Daumier:
The Drama c. 1860-1864
Hopper
foi influenciado pelo pintor francês Honoré Daumier, que pintou cenas teatrais
que mostravam tanto a peça quanto os espectadores, mas ao passo que Daumier
retratou a platéia intensamente envolvida com a ação no palco,
Intermission 1963
Hopper pintou espectadores, não apenas alienados da ação, mas de outros espectadores. A solidão e isolamento dessa mulher são enfatizados por uma porta fechada, sua receptividade e passividade (quase um transe) são acentuadas pelos fortes ângulos diagonais da cornija e dos assentos, que parecem impulsioná-la, querendo ela ou não, em direção do palco, do qual vemos apenas um vestígio. Ela parece estar enfeitiçada, e abomina a ideia de voltar à realidade.
First Row Orchestra 1951
Aqui,
em contraste, o palco ocupa grande parte da pintura, em parte para transmitir a
sensação de expectativa em um teatro nos momentos que antecedem o levantar da
cortina. Mas não há nenhum traço de empolgação ou antecipação, nem mesmo o
mínimo de conversa entre os que chegaram mais cedo. A mulher na primeira fila
cruzou as pernas na direção oposta à do marido, sinal de que ela está muito
pouco interessada nele, embora ele, por sua postura, pareça ser atencioso. Em
vez disso, ela presta atenção no programa. Claramente, porém, ela deriva muito
pouca inspiração daí também; podemos perceber isso pela sua mão esquerda, que
pende de uma forma que denota tédio – um motivo que se repete na mão do homem
no final da segunda fila. Mesmo assim, as cores, a ação e os sons do teatro
provavelmente servirão como alívio da tediosa monotonia de uma vida alienada
até mesmo do seu cônjuge.
New York Movie 1939
Novamente
uma cena em um cinema, no qual existe ação acontecendo, mas vemos apenas um
pedaço da tela. O foco também não está nos espectadores, como em 'First Row
Orchestra', mas em uma melancólica empregada de cinema. Os espectadores se
encontram absortos na ilusão do filme, enquanto a empregada está esmagada pelo
tédio. A escadaria iluminada sugere a possibilidade de uma ascensão espiritual,
de transcender sua tediosa situação, mas ela permanece aprisionada em seu mundo
interior amarrado a uma realidade excruciante e monótona, na qual
representações de irrealidades são apresentadas noite após noite após noite.
Note a coluna, com motivos que remetem ao mundo real, à natureza, congelados em
gesso.
Nenhum
outro pintor era capaz de capturar a alienação humana tanto da natureza quanto
da civilização, ou cultura, produto total do trabalho humano. Aqui a
civilização é simbolizada apenas por três postes de telégrafo e um pedaço de
estrada que parece começar e terminar em lugar nenhum. De onde vem? Para onde
vai? Apenas desorienta o observador. A natureza é representada pelas massas
arredondadas das colinas, as quais parecem emanar permanência e paz, mas também
sugerem uma indiferença em relação às coisas humanas. Não há nenhuma criatura
solitária à vista.
Railroad Train 1908
Nesta
pintura a natureza é representada pela faixa de grama, pelo céu e pela pluma de
fumaça, a civilização pelo trem e pelo solo compactado da linha férrea. A cor
preta do trem confere a ele poder mistério. Mas o preto também é associado ao
medo e ao desconhecido. Ele se destaca agressivamente contra a grama e a
fumaça, a cor amarelada desta última sugerindo doença e decadência. Mas onde
está a locomotiva, apitando e trovejando pelos trilhos? Hopper com frequência
retrata um instante no qual uma ação está prestes a acontecer, ou um logo
depois que aconteceu. O observador fica assim meio desorientado por que ele
nunca está presente no evento em si; ele fica alienado dele.
Aqui
está presente a própria locomotiva, mas a maior parte dela não aparece na
imagem. E ela não está trovejando pelos trilhos. Pelo contrário, está parada
diante da entrada de um túnel escuro, o que frequentemente sugere mistério e o
desconhecido. Para Hopper o trem, mais do que qualquer outra coisa,
representava a revolução mecânica que estava varrendo o mundo, mas seu
interesse nela era filosófico e não científico. A gravura parece nos perguntar:
“para onde a revolução mecânica está nos levando?"
Qual
é o seu impacto em nosso mundo? Aqui uma vaca parece ter dificuldades para
atravessar um trilho de trem, mas suspeitamos que não seja apenas o gado que
está enfrentando problemas ao lidar com a transformação mecânica.
House
by the Railroad 1925
Assim
como em Railroad Train e American Landscape, um ponto de vista baixo foi
escolhido para isolar o sujeito de seu cenário natural, o qual poderia servir
de referência para um significado histórico, pois a casa se encontrava
“orgulhosa” e natural em seu próprio cenário. Separada do observador, como
aqui, literalmente atravessada pela linha férrea, emblema do progresso
mecânico, ela apenas parece anacrônica e bizarra, além de abandonada, já que
todas as janelas parecem fechadas e com cortinas. O único traço de natureza,
além do céu, é a terra e o aterro feito pelo homem. Mais uma vez fica evidente
a influência de Hopper no gênero noir.
The
Bates' house, Psycho 1960
Um
pôr do sol incandescente, a memória persistente de um belo dia, mas também um
símbolo do fim de uma era magnífica, a era de uma América virgem e sem limites.
A ferrovia transportava para as regiões mais remotas da terra todas as bênçãos
ambíguas da civilização moderna com seu movimento e barulho frenéticos. A
paisagem é imensa nesta obra, e suas formas ondulantes sugerem uma calma e ritmo
naturais. Mas sua crosta ancestral foi cortada para abrir caminho para os
trilhos, cujas linhas retas reluzentes parecem criar uma base artificial e mais
fria para a paisagem. Ainda assim, estão ausentes o movimento e o ruído
incessantes associados à civilização moderna. Não são os efeitos diretos que
Hopper deseja capturar, mas seu impacto sobre a existência. A torre de comando,
que parece uma torre de vigilância, com uma sombra sinistra, e um poste de
sinalização que lembra o mastro de um campo de prisioneiros, parece guardar uma
barreira silenciosa que impede a entrada na paisagem.
New
York, Newhaven & Hartford 1931
Diferente
de House by the Railroad e Railroad Sunset, nesta pintura temos uma
visão mais elevada dos trilhos, de modo que suas junções ficam totalmente
visíveis. Elas formam uma série de linhas diagonais curtas que passam
eficientemente a ideia de movimento. O efeito é repetido nas várias árvores de
troncos estreitos, que parecem escalar o aterro, enquanto vários de seus galhos
apontam para a direita, reforçando a sensação de movimento. Alguns até lembram
animais correndo ou voando. A casa parcialmente coberta não está posicionada em
uma terça parte do quadro, como é mais comum, mas no centro dele, de modo que
parece ter sido deixada para trás pelas árvores. A paisagem que desce para a
esquerda também contribui para a sensação de movimento para a direita, assim
como a construção externa que parece descer a encosta. O efeito geral é de um
único quadro extraído de um filme em movimento. De um ponto de vista
psicológico, a experiência do presente foi reduzida a uma fração de segundo e
isolada, ou alienada, da continuidade do passado, presente e futuro.
Compartment
Car 293 1938
O
advento da ferrovia, assim como o do automóvel ou do telefone, teve como efeito
o encurtamento das distâncias, o que resultou na diminuição da experiência de
viajar. A moça está sentada confortavelmente em um compartimento bem iluminado,
quase como se estivesse em casa, e a sensação de viajar aqui está reduzida a um
trecho de paisagem emoldurado por uma janela, como se fosse uma pintura
pendurada na parede de sua própria casa. Ela se senta longe desse “quadro”, sem
interesse nele, absorta na leitura – algo que ela poderia fazer em casa. Embora
podendo relaxar em seu compartimento privado, suas pernas cruzadas e seu chapéu
ainda na cabeça mostram certa atitude defensiva. Os detalhes da paisagem que
ela ignora são significativos. O pôr-do-sol é por tradição um lembrete da
morte, o fim da vida, de que a vida é para ser vivida, e de que a vida dela
está se esvaindo. A ponte simboliza a transformação de um estado para outro, ou
a possibilidade de uma vida ativa em vez de uma que permanece imutável.
Chair Car 1965
Aqui,
foi removido todo traço do mundo fora do trem, extinguindo assim qualquer senso
de movimento. Os passageiros confortavelmente sentados estão alienados do mundo
exterior, já que nenhum deles está olhando pela janela. Estão também alienados
um do outro, uma vez que – como é comum em Hopper – não há nenhum sinal de
conversa entre eles. É como se o movimento entre dois locais não fosse mais
movimento, mas apenas outro espaço, e ainda por cima confinado, já que não há
maçaneta na porta que leva para fora dele. A experiência de uma jornada,
simbolizando uma aventura na própria vida, se tornou congelada, sem vida e
confinada.
Approaching
a City 1946
O
túnel escuro, como aquele na gravura Locomotive, significa mistério e o desconhecido,
mas aqui não há nenhum trem. Em vez disso, o observador é colocado na posição
de imaginar a si mesmo pisando nos trilhos, com medo de ser aniquilado num
instante. Além disso, em vez do senso de elevação muitas vezes associado à
proximidade do fim de uma jornada, ficamos na suspeita de sermos devorados por
uma coisa monstruosa e insensata, simbolizada pela fachada sem cor e pelas
janelas opacas do prédio acima.
Night
Windows 1928
Na
era agrária existia uma distância entre as pessoas, tanto em sentido físico
quanto psicológico, mas a era da máquina demoliu essa distância e introduziu em
seu lugar uma falsa sensação de intimidade. A intimidade genuína é aquela
incorporada a uma narrativa, uma história humana, mas a ‘intimidade’ retratada
nesta pintura é propositalmente fugaz e fragmentada por recursos tais como a
cortina empurrada subitamente por uma rajada de vento, a figura humana
inclinada momentaneamente, bem como a redução do espaço, e especialmente pela
divisão da imagem em três enquadramentos, como um trecho de filme de cinema.
São frequentes os comentários de que as pinturas de Hopper resistem a uma
narrativa, implicando que tais recursos são apenas artifícios que Hopper
empregava para tornar suas obras interessantes para as pessoas. Isso está longe
de ser verdade. Hopper estava apenas registrando suas impressões pessoais da
vida enquanto condicionada às exigências alienantes da era da máquina.
Office
at Night 1940
Alguns
observadores tentaram criar uma ‘história’ romântica nesta pintura, mas a
postura rígida das duas figuras indica na verdade uma repressão de sentimento
romântico, especialmente por parte do chefe, que de forma estudada ignora as
curvas voluptuosas de sua bela secretária. A postura dela, entretanto, livre de
uma atitude profissional, é mais receptiva, pois ela se virou para ficar de
frente para ele. A possibilidade de um episódio romântico é sugerida pelo
retângulo de luz na parede de trás, que une as duas figuras, e pela cortina que
balança, simbolizando sentimentos em comoção. As mãos ocupadas das figuras
(algo incomum nas obras de Hopper) são uma forma de se manter sob controle, e
talvez uma forma de compensação por um abraço. A pintura poderia ser um estudo
de repressão do sentimento espontâneo, uma das principais consequências da
alienação.
Room
in New York 1932
A essa altura não deveria nos surpreender que não exista comunicação entre esses dois personagens, embora sejam obviamente marido e esposa. Sua alienação em relação um ao outro é enfatizada pela porta fechada ocupando o espaço entre eles. As duas figuras estão visualmente unidas por uma mesa redonda, um símbolo do ambiente doméstico, mas aqui implica que a única coisa que os une é o espaço físico que compartilham. A forma de se vestir do homem indica que ele acaba de chegar do escritório, onde ele estava sentado lendo material impresso o dia todo, apenas para chegar em casa e ler mais material impresso. Mas ele não está lendo um jornal, relaxando; está inclinado para frente em uma atitude de estudo. Estudo de números, talvez finanças. A mulher, em contraste, parece estar usando um vestido de sair, o que mostra um desejo de sair socializar, ou simplesmente de agradar o marido. Seja qual for o motivo, ela quer aproveitar a vida e quebrar o feitiço da alienação. Sua mão esquerda pendendo indica tédio, e ela toca algumas notas no piano para se distrair. Talvez desejasse que seu marido se interessasse por ela e largasse sua obsessão por números! O vermelho de seu vestido simboliza paixão, desejo, amor.
Summer
Evening 1947
Aqui
temos uma garota que repele sentimentos espontâneos, como testemunha a rigidez
de seu corpo, apoiado na varanda como que para evitar ser persuadida. Ela usa
apenas uma roupa de banho de duas peças, sem alças, um item de vestimenta que
rotularia a usuária como “ousada” em 1947. Sua postura, inclinando-se frente, é
uma atitude de resistência, mas ao mesmo tempo um tanto provocativa. O rapaz
está de frente para ela, com a mão no peito, aparentemente num gesto de
súplica, possivelmente está se declarando para ela. Por que ela resiste tanto?
Podemos talvez achar a resposta numa carta que uma mulher enviou a uma revista,
após a publicação do relatório Kinsey 1948 sobre o comportamento sexual
masculino. Ela reclama que todo o estudo foi uma perda de tempo para o Dr.
Kinsey; ler o livro foi uma total perda de tempo para ela. Tudo o que o livro
fez foi provar o que ela e toda moça direita sempre soube, a saber, que “a
população masculina é um rebanho de bodes maliciosos, ao ataque.”
Sunlight in a Cafeteria 1958
♪ Love and marriage, love and marriage
Go together like a horse and carriage ♪
♪ Amor e casamento, amor e casamento
Andam juntos como cavalo e carroça♪
Quando
esta canção foi escrita, em 1955, cavalos e carroças há muito tinham sumido das
ruas da América, mas o cavalo e carroça da moralidade sexual seguiam firme pela
América em 1958. Tanto o rapaz quanto a moça parecem estar livres para um
relacionamento. O rapaz faz um gesto com a mão esquerda, parecendo estar
prestes a se dirigir à moça, e esta, por sua vez, está com o rosto inclinado na
direção dele. Mas existe uma barreira entre eles, pois a moça está iluminada
pelo sol, ao passo que o rapaz está na penumbra. Ela brinca com seus dedos,
parece estar pensativa. Sobre o quê será que ela pensa? Na mesa em frente a ela
há dois objetos que podem dar uma pista: há um saleiro e um pimenteiro – este
último da mesma cor do cabelo dela – posicionados lado a lado. Casamento? Por
outro lado, na mesa atrás do rapaz há um único saleiro, ereto, o que indica
seus pensamentos de natureza mais carnal. Ele observa a planta no parapeito,
símbolo de ambiente doméstico, como se precisasse se adaptar a isso antes de
poder se aproximar da moça. De fato, podemos facilmente imaginar os dois indo
embora e nunca mais se encontrando novamente, pois, pelo menos até 1958, as
pessoas ainda viviam sob o controle de uma moralidade sexual que separava as
“moças direitas” dos “bodes maliciosos”, que precisavam ser domados pelo
casamento. Será que Hopper colocou a moça sob o sol e o rapaz na penumbra para
zombar desses conceitos alienantes?
Hotel
by a Railroad 1952
Chop Suey 1929
Novamente, nem um traço de natureza. O céu é apenas um vazio e o silêncio predomina entre as quatro pessoas. A alienação entre elas é enfatizada pelas linhas verticais que os dividem no espaço e sua mudez contrasta estranhamente com as cores que dominam o ambiente. Laranja, a cor da peruca de um palhaço, sugere diversão, frivolidade e entretenimento. O efeito é potencializado pelo aspecto carnavalesco do letreiro do lado de fora da janela com suas lâmpadas multicoloridas, e também pelo vermelho e branco do rosto semelhante a uma máscara, que se projeta para dentro no espaço da cena.
Vindas da esquerda, as diagonais afuniladas conectando esse rosto ao de seu companheiro parecem sugerir que o homem acaba de dirigir a palavra à mulher, e não ela a ele, pois sua a cabeça do homem, banhada em numa cor azul fria e seu olhar voltado para o chão sugerem uma indiferença habitual ao fervor transmitido pelo chapéu vermelho. A mulher que está de costas para nós pode estar falando, pois está inclinada para frente com os cotovelos na mesa, um gesto que indica disposição para conversar. A mulher do outro lado da mesa, em contraste, senta-se ereta, defensivamente, e os ombros meio de lado mostram que ela não está confortável nessa situação; além é claro do fato de não olhar nos olhos de sua interlocutora.
Eleven
AM 1926
Uma
mulher olha através da janela aberta para algo ou alguém invisível ao
observador, um motivo comum em Hopper, que obscurece a relação do sujeito com o
mundo. A figura se destaca no pequeno
espaço que ocupa por causa da brancura de sua pele contra as cores escuras do
plano de fundo. Sua nudez parece convidar à intimidade, mas seu rosto, a parte
da anatomia que mais distingue os seres humanos, está virado para o outro lado,
de forma que o observador fica mantido à distância. A palidez cadavérica de sua
pele sugere uma condição adoentada, mas em contraste, seu cabelo longo e
volumoso demonstra um desejo de ser feminina e fértil, isto é, saudável. Mas
ela nunca alcançará isso até que supere sua alienação do mundo externo.
Automat 1927
Aqui o
relacionamento do indivíduo com o mundo exterior mais uma vez parece alienado.
O olhar desalentado da mulher mostra que seu ser está totalmente focado em seu
próprio mundo interior. Através da ampla janela, nada do lado de fora pode ser
visto, exceto um reflexo parcial do lado de dentro, o que simboliza seu próprio
mundo interior. Ela reluta em abandonar seu copo, o que reflete sua relutância
em descartar seu fascínio introspectivo. A mesa redonda é tradicionalmente
associada ao “mundo”, e sua posição empoleirada sobre ela sugere que sua vida
interior se tornou seu único mundo. Sua escolha de casaco, com detalhe de
peles, enfatiza sua feminilidade, assim como o batom vermelho que ela usa. A
modéstia da feminilidade aparece na posição de suas pernas. Fisicamente, ela é
um paradigma de mulher madura, fértil, uma impressão acentuada pela taça com
frutas sobre o peitoril da janela. Mas sua promissora fertilidade está fadada a
permanecer infrutífera pela falta de um relacionamento adequado com o mundo
exterior e com outras pessoas. A cadeira vazia à direita, de frente para a
mulher, insinua a ausência do “outro”.
Room in Brooklyn 1932
“Mas silêncio! Que
luz se escoa agora da janela? Será Julieta o sol daquele oriente?” Na arte do
Ocidente, a luz tem sido há muito tempo símbolo do amor. a figura feminina
nesta pintura, porém, apertada no canto esquerdo do quadro, escolheu se sentar
longe da luz do sol que vem do leste, embora ela esteja sendo fisicamente
tocada por essa luz. Ela está de costas para o observador, indicando separação,
e ela não parece sequer estar olhando pela janela, mas absorta em um livro,
pois ela está de cabeça baixa e com os cotovelos apoiados nos braços da
poltrona. ao contrário da figura humana, parcialmente obscurecida pela sombra,
o vaso de flores em cima da mesa ocupa uma posição de destaque no quadro. além
disso, recebe bastante ênfase pela sua altura e seu lugar banhado ao sol.
Embora a mulher esteja ligada ao vaso pelos padrões florais de seu vestido, as
folhas e flores parecem estar buscando a luz, em contraste com sua pose
retraída. Esta pintura transmite as mesmas sensações que Automat. a jovem
mulher está alienada de sua própria feminilidade, de sua capacidade de amar e
da promessa de fertilidade por causa da falta de um relacionamento adequado com
o mundo exterior.
Já
vimos até agora em muitas pinturas pessoas “à mostra”, como resultado de
viverem numa cidade maquinal, onde às vezes até mesmo detalhes íntimos da vida
de uma pessoa tornam-se públicos. Qual é a consequência de tudo isso? Uma perda
de espontaneidade, com certeza, por que uma pessoa comum, em tais condições, se
torna uma espécie de performer público, alguém que perdeu seu senso de
identidade, de realidade, de quem é, de forma que sucumbe a fantasias de fama.
Inconscientemente raciocina: “se eu for famoso, então o público dirá quem sou.”
Então, em 1962, parece que a ideia de romance não mais era de interesse da
humilde funcionária de escritório. Agora ela quer ser modelo, uma celebridade,
uma Marilyn Monroe, amada por todos, porém livre das complicações de ser
obrigada a retribuir esse amor.
Early Sunday Morning 1930
Linhas
horizontais e iluminação forte novamente sugerem um palco de teatro com uma
cidade ao fundo, chocante pela ausência de atores, um palco no momento em que a
cortina se ergue, mas antes que ação se inicie. A cena é ainda mais despersonalizada
por causa dos letreiros ilegíveis, a ausência de detalhes nos interiores, o
arranjo das cortinas vagamente inquietante por sugerir pessoas ocupadas, mas
ocultas e possivelmente à espreita. Um senso de estabilidade enganoso é
transmitido pelas fortes linhas horizontais e verticais, mas uma tensão
embrionária é sugerida pelas sombras que se esguelham e atravessam a fachada e
pela escuridão inescrutável espreitando nas vitrines e corredores das lojas.
Um
homem sentado do lado de fora do que parece ser sua loja. Ele parece entediado
porque não há clientes e ele não tem o que fazer. Pode-se dizer que sua
monotonia e vazio interior é que o impedem de fazer alguma coisa, ou que fazer
qualquer coisa não ligada a seu negócio é inconcebível para ele. Domingo é
tradicionalmente um dia para descansar, e mesmo que o homem esteja imóvel, ele
não possui a serenidade que o permitiria descansar de verdade. Embora a calçada
de madeira e os edifícios indiquem que esta é uma cidade do interior, não há
nenhum traço de natureza à vista.
Lighthouse
Hill 1927
Drugstore 1927
Esta
pintura não tem um ponto focal definido, então o olhar vagueia, perdido. As
diagonais nas estamenhas e as sombras triangulares na calçada criam tensão. Até
mesmo as linhas horizontais na frente da loja não são paralelas ao
enquadramento, mas inclinadas de leve, sugerindo insegurança ou incerteza. A
luz no interior parece implicar um refúgio da rua deserta e escura, mas a porta
de entrada, que deveria mostrar que o visitante é bem-vindo, está escondida. A
porta ao lado está fechada e escura, o que significa sigilo e repulsa. Além
disso, o interior parece tão vazio de seres humanos quanto o lado de fora.
Impulsos conflitantes são criados pelo encontro entre os garrafões suspensos,
símbolo tradicional das farmácias, com suas formas femininas, e as linhas retas
masculinas das estamenhas, juntos formando um conjunto de aparência irregular,
ameaçadora. O princípio masculino se manifesta também no aglomerado de caixas
abaixo, que estão dispostas em ângulos que convertem suas linhas verticais em
diagonais que criam tensão. As caixas, juntamente com as estamenhas acima,
parecem direcionar o olhar a um ponto de foco: o espaço retangular em branco
delineado por linhas retas. O trabalho como um todo implica que, ao passo que o
mundo externo é tipificado pelo mistério e ameaça, no espaço interior há
ansiedade e incerteza, vazio de substância em seu núcleo. Existe forma melhor
de dizer em tinta que o homem está alienado de seus semelhantes e de si mesmo?
Um pouco de humor fica claro no anúncio de “Ex-Lax”, um remédio comum para
constipação, já que uma causa frequente de constipação é a ansiedade. A
implicação é: “se você sofre de ansiedade, tome remédio”. Uns trinta e cinco
anos mais tarde, os Americanos estariam fazendo isso em larga escala.
Mais
uma vez, uma rua deserta e escura, com faixas de luz triangulares e sombras na
calçada que sugerem que a tensão emana do interior do restaurante. Mas qualquer
porta que poderia receber as pessoas não está apenas escondida, simplesmente
não existe. Em contraste com Drugstore, porém, o lugar não está vazio de seres
humanos: a tensão de alguma forma emana deles. Alguns observadores percebem na
cena uma expectativa de algum acontecimento dramático, baseado na ideia de que
o casal na pintura parece um gângster e sua “parceira”. Isso é verdade. Olhe
para o homem com atenção. Ele parece estar encarando fixamente o atendente com
os lábios apertados, e a forma despreocupada que ele segura o cigarro mostra
certa despreocupação em seus escrúpulos. A mulher, magra e de ombros largos
como na ideia convencional de uma amante de gângster, se distrai de forma
indiferente com o que parece ser um pedaço de papel, como se estivesse
aguardando – como cúmplice – um inevitável irrompimento de violência. Mas não
há evidência objetiva em apoio de tal visão, e o trabalho contém várias pistas
que tendem a contradizê-la, como a presença de uma terceira pessoa, ou, é
claro, a ofuscante luminosidade do lugar, ou a forma como expõe
espetacularmente o interior. Dado o interesse de Hopper pelo cinema, é possível
que ele tenha concebido o lugar para se parecer com um cenário de filme, com o
propósito de confundir realidade e fantasia. Só por que alguém parece um
gângster não significa que seja de fato um, como qualquer ator num filme de gângster
pode confirmar. Qualquer cena que seja deve ser interpretada e analisada em
busca de seu significado, e depende de você definir até que ponto ela é real ou
irreal. Mas é claro que se você estiver alienado de si mesmo, não existe um
“você” para fazer tal definição. A pessoa, em tal condição, fica apenas afogada
em um mar de sensações.
Cape Cod Evening 1939
Mais
um comentário de Hopper sobre o fim da era agrária, na qual esta casa em estilo
vitoriano certamente se destacava entre as propriedades e terrenos cultivados.
Mas agora a natureza está ocupada retomando o lugar. A floresta parece ter
avançado até as paredes da casa, e a árvore na dianteira estende um galho até
uma janela, como um braço explorador. A grama engole os pés dos moradores, um casal
típico de Hopper, alienado e em silêncio mútuo. Eles se encontram ilhados,
vindos de uma era que se encerrou. A mulher tenta “manter as aparências” usando
um vestido formal e um cabelo bem cuidado, mas esses cuidados apenas a tornam
ainda mais antiquada. Seus braços cruzados mostram que seu destino a deixa
impaciente. O homem, entretanto, nem sequer se incomoda de vestir uma camisa de
mangas compridas, enquanto sua tentativa de chamar a atenção do cão com uma
bola mostra que ele aceitou ou se resignou com a vida que os dois têm. Mas o
animal escapa da domesticação por um momento, pois alguma coisa na floresta
invasiva chama sua atenção.
É uma
tarde novamente, com a mesma sugestão de um sol se pondo na América rural. Sua
morte é sublinhada pela escuridão da floresta ao fundo, contrastando com as
linhas claras e brilhantes do posto de serviços, um símbolo fundamental da
América da era da máquina. Mas em vez de oferecer um elogio a esse emblema de
progresso mecânico, Hopper confere a ele uma série de símbolos arcaicos.
Primeiro, a construção de tábuas. Ela lembra ligeiramente uma igreja ou templo,
com algo que lembra um campanário no topo e a luz ofuscante que irradia do seu
interior e em volta dela, como se a fonte dessa luz fosse uma chama sagrada e
não lâmpadas fluorescentes. Uma dessas línguas de fogo surreal chega quase a
tocar a grama do acostamento da estrada. Segundo, todos que entram o fazem sob
a efígie do Pégaso, o cavalo voador da mitologia grega, associado à ideia de
velocidade, força e transporte rápido, atributos que as empresas querem que
sejam associados aos seus produtos. Terceiro, as próprias bombas de
combustível. Elas parecem ídolos antropológicos, feitos não de madeira ou de
pedra, mas de metal; mais do que isso, são máquinas com forma humana. Como eu
disse no início, a máquina se tornou o mestre do Homem e deixou de ser o seu
servo. Quarto, o atendente do posto de serviços. Por que ele estaria mexendo
com essas máquinas ao cair da noite se não fosse o sumo sacerdote que ministra
esses deuses mecânicos? E por último, eles estão tingidos de vermelho, mas um
vermelho que Hopper ajustou para a cor do sangue. Sangue sacrificial, alguém
pode afirmar, pois a máquina, como mestre do Homem, suga dele seu sangue vital
por aliená-lo de tudo aquilo que o torna humano.
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